A PASTORALIDADADE DO PASTOR NA PASTORAL

Devo confessar logo que o título deste breve ensaio não diz muita coisa sobre ele, são somente palavras que muito se têm ouvido na Igreja e que foram ali colocadas de uma forma a haver alguma coerência entre elas e no fundo não dizem tanta coisa sobre o objetivo final deste ensaio. Ou será que teria? Só peço que me permitam jogar aqui algumas palavras avulsas sobre algumas coisas da minha vida.

Começo com um fato bem avulso, a formatura da minha irmã, três anos mais nova do que eu, e que se formou no ano de 2017 no Colégio da Polícia Militar Doutor Cézar Toledo. Uma das várias cerimônias da formatura é a militar por excelência, com alunos fardados em continência a autoridades que estão em um palanque e foram ali só para ver cerca de 300 jovens marchando em um gramado de um lado para o outro, fazendo movimentos sincronizados que só quem está em uma distância considerável consegue entender. Da arquibancada aqueles 300 jovens formam um pelotão que se movimenta de um lado para o outro, indo e vindo, em todas as direções possíveis, mas sempre em um movimento sincronizado, ou pelo menos mais ou menos sincronizado. Este pelotão representa uma completa abolição da individualidade, onde você faz parte de um setor, uma coluna, uma fileira, mas jamais uma individualidade. Até porque fazer algo que se difere daquilo que seu setor, ou sua coluna, ou sua fileira estão fazendo e reivindicar para si uma individualidade indevida, neste caso se torna um grande erro e uma afronta àqueles que estão da forma que deveriam, pois, você será responsável por um erro grotesco. Mesmo quem nunca participou de uma cerimônia militar, ou nunca teve contato com a famosa ordem unida, vai se indagar “Por que aquela pessoa está sozinha ali? ”.

Foi em um ambiente assim que eu pude fazer a experiência da coroa solta no dente do tenente Lino. Gustavo Corção, em sua obra A descoberta do outro, narra uma cena em que, ele perdido em um ambiente burocrático, em busca de um documento que lhe faltava, em meio a processos burocráticos e relações completamente frias e vazias, onde muitas vezes se parece conversar com máquinas, pôde ver na boca de um tenente, que chupava sua coroa que estava se soltando, algo a mais. “Na boca escancarada do tenente Lino não vi a apoteose da burocracia; vi apenas uma coroa mal posta, um dente que ele iria chupar no compasso da aflição, que a noite seria comentado em casa, mostrado a esposa como fora a mim, assim mesmo, com o dedo fincado a esticar as carnes magras”[1].

Enquanto eu ouvia o toque do bumbo e a batida abafada de pés na grama, por alguns breves segundos, pude olhar para aquele pelotão de 300 jovens como não sendo somente um pelotão, mas pensava em como cada uma daquelas pessoas teria chegado ali, quem será que teria ido vê-las, qual seria a história de cada uma, o que estaria passando em cada cabeça e, naquela hora, pude chegar a tal conclusão: ali estão pessoas semelhantes a mim, com uma vida interior e uma história tão grande que, se fossem relatar tudo, as bibliotecas do mundo não caberiam tantos detalhes. Este fato durou pouco, não me lembro quanto tempo, mas logo aquele pelotão se tornou somente mais um entre tantos que eu já havia visto, e aquelas pessoas voltaram a ser o todo.

Neste momento, o caro leitor deve estar se perguntando qual o sentido disso tudo, quem em sã consciência não sabe que o que existe naquele pelotão são pessoas? Quem não sabe que um tenente trabalhando em uma seção burocrática do exército é uma pessoa? Todos sabemos, é claro, afinal, do mendigo ali da rua ao lado, até o Papa, todos são pessoas.

Já me justifico, mas antes disso acho que vocês deveriam conhecer o Marcelo. Marcelo é um grande amigo que conviveu comigo por um tempo no seminário, estava um ano à minha frente na formação, mas devido às regras da nossa faculdade de Filosofia estudávamos juntos. Um dia, o Marcelo veio perguntar-me: “Marcão, você teria o livro Amor e Responsabilidade? Fiquei sabendo que nele João Paulo II se baseia em uma frase de Kant para falar da pessoa”. Eu ainda não tinha aquele livro, mas me interessei por ele e na primeira oportunidade o comprei. Pouco depois desse fato começamos a estudar história da filosofia contemporânea e lá ouvimos falar de um tal filósofo personalista Karol Wojtyla e sua obra Amor e Responsabilidade. Os conceitos personalistas logo me atraíram, como era bonito a forma pela qual se tratava a pessoa, principalmente em Karol Wojtyla, o futuro Papa São João Paulo II. Me dediquei um pouco ao estudo. Eu, o Marcelo e o Célio, cada vez mais nos fascinávamos com as afirmações sobre a pessoa humana e o significado que este termo traz. E foi no final desse ano de estudo que minha irmã se formou.

Agora termino minha explicação. A pessoa vista pela ótica personalista é algo incomensurável, ela é um mistério que não se pode definir, mas esse mistério não é abstrato e distante, nós somos este mistério que possui uma história, uma vida interior irrepetível, algo diante do qual, como Moises diante da sarça ardente, deveríamos desamarrar nossas sandálias em sinal de respeito àquele mistério que se apresenta aos nossos olhos, e foi isso que eu vi naquele pelotão, foi isso que, por alguns breves segundos, tive a graça de poder entender um pouquinho. Pude entender que cada um que estava lá embaixo, de um lado para o outro, perdidos no meio de um coletivo, cada um daqueles ali, eram um mistério incomensurável e inexplicável. Foi nesse momento que reconheci que, por causa disso, dessa dignidade própria, todos mereceriam meu total respeito e admiração, pois, o que cada um deles era no mundo não poderia ser substituído por ninguém.

Chego agora à conclusão de toda esta viagem por assuntos avulsos, ou não tão avulsos assim. Naquela época ainda não conhecia mais a fundo a filosofia personalista e nem conhecia Gustavo Corção e sua descoberta do outro, mas aquele fato levou-me a começar a pensar, que nem toda a minha atenção dada a uma pessoa, seria o suficiente para satisfazer aquilo que ela merece. Porém, ao menos um propósito ficou: olhar, cada vez mais para quem me cerca com esse olhar personalista, que leva a dar à pessoa toda atenção possível e reconhecer nela um mundo de possibilidades, um aglomerado de experiências e um mistério com uma dignidade ímpar. Como na história que ouvi, em algum lugar, de algum padre, para algum público, que dizia sobre a capacidade fantástica de São Josémaria Escrivá em depositar toda a sua atenção na pessoa com quem conversava.             Esse deve ser também o olhar do pastor para com suas ovelhas. Um olhar que reconhece, em uma missa de domingo pela noite, não somente bancos cheios, mas pessoas que estão ali, cada uma com uma história própria, anseios e desejos próprios, preocupações e sonhos inenarráveis. Esse deve ser o olhar do pastor ao chegar mais uma pessoa para se confessar, mesmo depois de duas horas sentado em uma cadeira ouvindo. Esse deve ser o olhar do pastor em uma reunião com algum grupo da paróquia. Esse deve ser o olhar do pastor ao ver alguém afastado da Igreja. Esse deve ser o olhar do pastor a todo momento, um olhar que reconhece cada pessoa como sendo aquela que foi amada, a tal ponto, que mereceu que Jesus morresse na cruz por ela, para que ela possa, um dia, chegar aos céus, esse deve ser o olhar que motiva a pastoralidade do pastor na pastoral.


[1] CORÇÃO, Gustavo. A descoberta do outro. 1ª. ed. Campinas: Vide Editorial, 2017.

Marcus Vinícius Loures Rangel, 1° ano da configuração.

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