Certo dia um peixinho nadando junto de seu cardume, em uma direção à qual ele sempre esteve acostumado e nunca ousou contestar, se viu mais na lateral do grupo, de modo que, longe do centro onde se aglomeravam mais peixinhos, ele poderia contemplar livremente o vasto rio em que estavam.
Em um dado momento, ele sentiu como que uma pancada, o forçando a nadar na direção oposta à que ia o cardume, percebeu então que era a correnteza. Para o peixinho aquilo era uma novidade. De dentro do coletivo, seguindo todos sempre no mesmo rumo, ele nunca se dera conta de uma correnteza, que não fosse aquela causada pelas centenas de nadadeiras do seu cardume.
Eles estavam nadando na direção errada e poderiam nunca se dar conta disso, porque o erro cria a condição de permanência. Talvez outros até tivessem experimentado semelhante sensação, mas nunca ergueram a voz para contradizer a ordem dita “natural”.
Eu não entendo com profundidade a vida marinha, mas sei que os animais sendo irracionais, serão sempre instintivos, isso é, dificilmente veremos um peixe nadar em uma direção que não lhe ordene a natureza. Isso o poupará de nadar para dentro da boca de um tubarão. Julguei necessário esse caminho para lhes dizer que a correnteza não mudou.
Em nossos tempos é comum a crítica ao que está intrinsecamente presente no homem, como se agir como nos manda a verdadeira lei natural impressa em cada um, fosse algo terrivelmente condenável. Assim, a vida cristã é por muitos grupos considerada retrograda, intolerante e objeto de repudio.
Nessa perspectiva, a alguém que busca a santidade certamente vão dizer a máxima: você está nadando contra a correnteza! Eu penso que isso é um absurdo, tanto a crítica a alguém que está tentando acertar, quanto o uso da expressão. É como se dissessem: no princípio Deus criou a Lei e todos a deveriam observar, mas agora que o homem “superou” Deus e criou uma nova lei, nossa ação deve respeitar esse novo princípio e ir contra ele é condenável! A criatura excluiu o criador da própria obra, ou mais corretamente, tapou os olhos e os ouvidos e está cantarolando canções para ignorar a voz que exclama em toda a criação, inclusive na criatura mesma.
“Quando vejo os teus céus, obra de teus dedos, a lua e as estrelas, as coisas que criaste, que é o ser humano, para dele te lembrares, o filho do homem para que o visites?”[1], nadar contra a correnteza é ignorar toda a verdade objetiva a nossa volta. São João Paulo II, na Exortação Apostólica Reconciliatio er Paenitentia, falando da dimensão espiritual da vida humana, parte da consideração de Santo Tomás de Aquino que afirma que “o homem deve permanecer em comunhão com o princípio supremo da vida, que é Deus, enquanto fim ultimo de todo o seu ser e do seu agir”.[2]
Esse fenômeno dos nossos tempos, denominado “secularismo” é um movimento que enaltece o homem em detrimento de Deus, é o empreendimento do homem de construir um mundo que acabará por se voltar contra ele mesmo[3]. Quem foi que fez as aguas dos rios não correrem mais rumo ao oceano? Quem pode ordenar aos próprios fios de cabelo que eles não caiam? Quem pode dizer as nuvens a hora de começar a chover? Quem pode dizer ao homem que a vida só começa quando ele diz que ela começa? Quem pode dizer que a verdade é o que eu quero que seja verdade? Por mais que gritem o contrário, uma coisa é certa: a correnteza não mudou.
O constante correr do tempo tem a infeliz capacidade de calcificar as mentiras incorreitas. Os avós tomam para si uma mentira, que transmitida a seus filhos chega como uma firme opinião, que aos netos chegam como um dogma. O ateísmo, por exemplo, parte da experiência negativa de alguém que rompe com uma verdade objetiva e conhecida, que a toma por mentirosa e à sua posteridade transmite como verdade certa e irrevogável, suplantando qualquer possibilidade de crescimento da fé na geração vindoura.
Vivemos em uma época em que as crianças já nascem dentro de um ambiente de paganismo dogmatizado. São como os peixinhos que estão meio do cardume, nadando contra a correnteza e podem nunca se dar conta disso. Vencer a cultura hodierna não tem como conditio sine qua non um voto de fé, mas uma necessária experiência pessoal. Olhe ao redor com muita sinceridade e veja a direção em que o mundo caminha, pois “na realidade, Deus é a origem e o fim supremo do homem e este leva consigo um gérmem divino”[4]. Ir contra o movimento do mundo vai custar-nos muito esforço, santidade é ação e como dizia G. K. Chesterton: “Uma coisa morta pode seguir a correnteza, mas somente uma coisa viva pode contrariá-la”[5], voltemos, portanto, ao curso natural da existência, porque a correnteza é a mesma que Deus criou, o caminho não mudou.
Nas redes sociais nos dizem que para obter aprovação é preciso mostrar o corpo. Nas novelas nos ensinam que o matrimonio é totalmente dispensável. Nas ruas gritam “meu corpo, minhas regras” e dizem que as crianças devem poder escolher entre ser meninos ou meninas e tudo bem se elas não se identificam nem com um e nem com outro. Se discordamos, dizem que estamos nadando contra a correnteza, se insistimos somos intolerantes e eles nos ensinam o amor ao próximo queimando as nossas igrejas.
Imagino que se o peixinho se volta ao grupo e exclama: “estamos indo na direção errada!”, louco será um dos mais leves adjetivos que lhe vão atribuir. Eis o nosso tempo, a era neopagã, termo que intitula uma coletânea de textos do Papa Emérito, Bento XVI. A vontade do homem é racional, e, portanto, não lhe cabe a inocência do erro instintivo. No nosso tempo porém, a opinião de cada um é a verdade absoluta, ou pelo menos é isso o que afirmam, um tempo em que não há noção do pecado, só daquilo o que a ética relativista diz que é correto ou não.
A maior parte das pessoas que condenam Deus, a Igreja Católica, ou qualquer outra religião, condenam na verdade o que pensam sobre isso e na maioria avassaladora das vezes, não lhes faz jus. Não é absurdo que em um belo dia um peixe diga para si que deve começar a nadar na direção oposta, sem justificação plausível só porque assim a ele convém, o absurdo é que seu erro encontre respaldo nas vidas daqueles que nunca significaram a direção que a natureza lhes impõe, que dizem que a vida espiritual é um vasto mar e que a religião seja um aprisionamento nosso dentro de um limitado aquário.
Absurdo maior ainda é insistir em um caminho destrutivo. Diariamente vemos homens desfigurados, mulheres desfiguradas e ambos bestializados[6], crianças sendo corrompidas quando não assassinadas no ventre materno, consultórios psicológicos cheios e confessionários vazios porque embora não se saiba o sentido da vida, afirma-se com veemência que não é aquele que nos indicam a Revelação Divina. As torres das igrejas continuam, silenciosas, a nos apontar a direção do céu, o caminho do homem. Toda a realidade criada a nossa volta grita, eloquentemente: a correnteza não mudou.
[1] Sl. 8,4-5;
[2] Exortação Apostolica Reconciliatio er Paenitentia, n. 17;
[3] Cf. Ibid, n. 18.
[4] Gaudium et Spes, 3.
[5] G. K. Chesterton, TheEverlasting Man, 1925.
[6] Cf. expressão popularizada, de autoria de nosso Bispo anterior, Dom Manuel Pestana, de saudosa memória.
Gabriel Hudson Souza de Oliveira, 2º ano do discipulado.