Conquistamos com grande facilidade vastos impérios em um tabuleiro de War[1], mas falhamos miseravelmente na defesa do nosso jardim. Digo isso porque anualmente o seminário sofre uma invasão; sempre falhamos nos dados lançados e nas estratégias de guerra e vamos assistindo, imóveis, à inevitável invasão dos pássaros-pretos[2].
Estruturalmente, como é comum em casas religiosas, o seminário foi construído em forma de um grande “U”. Passamos mais de 18 anos em uma Capela provisória — o que é assunto para outro momento — até que a construção da nova Capela meio que fechou esse “U”, tornando-o um bloco quadrado com um jardim no centro. Talvez você conheça isso pelo nome de claustro[3]. Na época da seca, ele é como um grande oásis que permanece verde quando tudo fora do bloco perece seco e sem vida.
Nossos guerreiros protagonistas chegam voando e ninguém pode repreendê-los por escolherem esse oásis. O nosso mundo está repleto desses espaços verdes de conforto em meio à sequidão da “austeridade”. Quem poderá nos culpar por pousar nesses espaços de vez em quando? Gosto às vezes de observar as facilidades do nosso tempo frente às dificuldades de tempos passados, como as semanas que se tinha de esperar pela resposta de uma carta, frente aos segundos para um sinal ficar azul.
Esses soldados são verdadeiros exploradores e violentos defensores de seu jardim; ninguém ouse enfrentar aqueles que dão rasantes até nas sombras. Quando o oásis se torna pequeno para sua exploração, eles avançam na dominação e, caminhando, como todo bom seminarista, vão para a nova Capela. Os oásis da vida moderna não são maus; a ida à biblioteca e a exploração por livros em corredores são substituídas por uma sequência de cliques. Mas os olhos que correm rápido sobre a tela se cansam mais do que os passos entre um bocado de livros. Eis o perigo dos oásis, os pássaros ficam presos, e nós estamos cansados.
Sou de um tempo em que não se falava de ansiedade, e embora ela já existisse, era luta no tabuleiro de War em uma casa distante. Desde que o mundo começou a ficar marcado por um sinal vermelho porque alguém comentou na minha foto; ou o coração saltava em notificações na tela de um algoritmo que dita a métrica de quanto sou amado; ou de quando esperei que uma resposta viesse porque a confirmação ficou azul; a ansiedade jogou os dados e conquistou boa parte dos meus continentes.
O cansaço e a ansiedade vêm porque as facilidades parecem vir junto com um estatuto de obrigações. Aí, deixo de ser um visitante do oásis e me torno um escravo dele. O universo dos vingadores me obriga a assistir mais de 30 títulos entre séries e filmes[4] para entender que os heróis agora são fracos, e a força está em suas ‘versões femininas’. Mas quando eu brincava com bonecos de heróis, isso exigia muito da minha imaginação; eu podia parar quando quisesse, isso não me cansava, e não havia ansiedade pelo próximo lançamento no cinema. Eu era o protagonista e o diretor.
As rodas de conversa não eram regidas por um estatuto; eram leves, e faltava tempo. Agora é preciso carregar o fardo pesado dos jargões de memes que devem ser dogmaticamente decorados e repetidos. Uma pausa para a profissão de fé do “divino digital”: sempre que um forninho cair, a morte da formiga será chorada; numa declaração escrita com caneta azul, de dentro da viatura, pediremos socorro à polícia, e é sobre isso, e está tudo bem, porque a Jessica já acabou[5].
Não condeno os memes; gosto muito deles, mas não quero que eles se tornem uma obrigação, um serviço, um estudo. As conversas ficam pesadas, e sobra tempo. Deve ser por isso que de tempos em tempos, todo mundo se cala e baixa a cabeça para a própria tela: chegou a hora de bater continência para o nosso “senhor”.
As janelas também sofrem; os pássaros querem sair. A Capela é alta, e eles voam de parede em parede, batem nos vidros e pousam nos lustres. Os “donos do jardim” ficam presos na masmorra dos homens, mas também os homens ficam presos pelos “donos do jardim”, não aquele de onde fomos expulsos, que guardam os anjos, mas aqui fora, onde somos peregrinos e queremos voltar para o jardim original. Aqui onde às vezes é preciso parar, tirar os sapatos e se sentar para assistir um filme, ou perder alguns minutos rolando entre vídeos curtos. Aqui onde é caminho, mas ainda não é casa.
Diferente de João Batista, que com sinceridade apontava O Cordeiro de Deus, como que indicando aos que o buscavam “não é aqui, não sou eu, é Ele![6]”, em nossos tempos, os oásis exclamam confiantes: “o paraíso é aqui!”. E tanto quanto lhes falta sinceridade, a nós falta perspicácia para compreender que os oásis “refrescam” a jornada, mas não são o céu. A Capela não é o céu, não para os pássaros que agora querem voar, mas estão presos dentro dela. Ambos os jogadores se entreolham, homens escravos das facilidades do tempo e pássaros-pretos dentro da Capela. Há paredes onde antes não havia, há prisões onde antes éramos livres.
Dia desses, um sacerdote apontava o paradoxo entre dois homens e suas xícaras de café. Um deles precisou plantar, cuidar, colher, torrar, moer e passar o bom cafezinho. O outro precisou pegar uma cápsula e apertar um botão. Quem está mais cansado? Quem sofre de excesso de futuro? O problema certamente não é o café — e não farei aqui apologia para que o consumam sem açúcar. O primeiro homem senta-se à porta de casa para ver o sol que nasce preguiçoso no céu; o outro sorve a bebida junto com as 4 ou 5 newsletters que recebe diariamente no e-mail, das quais deve fazer um estudo teológico para poder estar “atualizado”. Talvez esse homem da cafeteira de cápsulas até tenha do lado dela uma caixinha de vitamina D, porque é preciso suplementar a falta de tempo para estar sob o sol.
Os “oásis” modernos às vezes se tornam uma prisão; não há grades ou correntes, mas também não há autonomia para desligar, bloquear a tela ou se abster. Uma prisão onde a vontade ficou enfraquecida porque muitas vezes abrimos mão dos bens maiores em troca dos bens pequenos. Tão baixo quanto o homem descer para entrar em uma prisão, tanto humilde ele deve se abaixar para sair dela. Os pássaros-pretos entram caminhando pela porta da Capela; não é voando dentro dela que eles vão conseguir sair.
Se foi a vontade enfraquecida de um homem pequeno que nos fez passar pela porta, não será o homem grande — orgulhoso — que vai conseguir sair sozinho dela. O orgulho é o grito de independência de alguém que é dependente. Ele nem sempre é uma coisa ascendente; às vezes consiste em se abaixar e julgar ser suficiente ficar aí, onde é caminho, mas ainda não é casa. Onde a gente se senta para descansar os pés, mas não pode fazer daí o nosso principal projeto de vida.
É pela humildade que sairemos caminhando de onde talvez tenhamos entrado nos arrastando. A humilde submissão de reconhecer que não podemos abraçar o mundo, não fomos feitos para isso e nem o mundo para ser inteiramente abraçado. Eis a beleza dos olhos descansados: eu não preciso saber de tudo, e o maravilhoso universo inexplorado é sempre muito maior do que consigo sorver dele; sempre será assim. Não vou falar de soluções aqui; eu também me sinto cansado às vezes, e vou tentando pedir licença desses lugares onde antes costumava bater o ponto.
Mas há algo que os pássaros-pretos na Capela ensinam: vai doer bater nas paredes, vai cansar tentar voar em vão, e é só quando as forças não mais permitem levantar voo que eles, humildes e humilhados, voltam a caminhar, para então sair pela mesma porta por onde entraram. As portas dos oásis estarão sempre abertas, e as correntes estão muito mais nas dependências que criamos do que nas coisas mesmas. Os algoritmos foram criados para nos viciar. As facilidades vão gradualmente nos tornar mais fracos. A informação vai nos saturar. O cinema vai nos doutrinar. As luzes das placas vão sempre dizer: “o paraíso é aqui!”.
Se o oponente nos vence muitas vezes, é bom observar as suas estratégias no tabuleiro. Abraçar o que há de bom e torna a vida ainda mais amável, mas lutar com todas as forças pela liberdade de ir e vir, de poder sempre escolher o bem maior. Deixar sempre muito claro para o aparelho no nosso bolso, quem é dono de quem.
São Josemaría Escrivá dá um ensinamento sobre o esforço no estudo e que vale para muitos outros âmbitos da nossa vida: “Àquele que puder ser sábio, não lhe perdoamos que o não seja[7]”, e, se me permitem o parafrasear, como de fato o faço e isto é estratégia para os homens, os pássaros-pretos ‘que lutem’ pela sua estratégia de dominação: aos que puderem voar, não os perdoamos que caminhem, porque o paraíso é logo e nós temos pressa.
PALAVRAS-CHAVE: PÁSSAROS; LIBERDADE; CAPELA; GUERRA; OÁSIS;
[1] War é um jogo de tabuleiro de guerra e estratégia, lançado no Brasil pela empresa Grow em 1971, baseado no jogo americano “Risco”;
[2] Muito provavelmente são da espécie de nome científico: Gnorimopsar chop, que significa “estorninho notável”.
[3] Galeria coberta e geralmente arqueada, que forma os quatro lados de um pátio interior.
[4] Conforme lista disponível na Disney Plus;
[5] Citações de alguns “memes” populares da última década;
[6] Jo 1, 29-36;
[7] São Josemaría Escrivá, Caminjho, ponto 332;
Gabriel Hudson Souza de Oliveira, 2º ano da Configuração.