A ocasião mais difícil para se escrever um texto é o de que este seja de tema livre. É difícil ter uma folha em branco diante de si e não saber para onde ir, aliás, é sempre difícil não saber para onde ir. Seja na escrita de um texto, seja dirigindo um carro, a ausência de uma finalidade é sempre um peso no exercício da liberdade. De que vale ser livre se não sei de que me serve a liberdade?
O fato é que a vida está continuamente se desdobrando no tempo, como um carro ligado com o tanque cheio. É preciso, vezes por vezes, decidir-se por seguir em frente, virar à direita ou ao oposto da direita, em uma via onde não se pode engatar a ré e voltar atrás. Estamos em um ‘veículo’ que recebemos de Deus, com toda liberdade para chegarmos a um lugar: o Céu. O Catecismo da Igreja Católica define a liberdade como uma força de crescimento e amadurecimento na verdade e na bondade, que chega a sua perfeição quando está ordenada para Deus[1].
Todo cristão está diante de uma folha em branco, e sabe o que tem de apresentar ao fim da vida. Deus é o destino da liberdade de todos os homens, cristãos ou não. Todos são dotados de liberdade porque “Deus criou o ser humano e o entregou às mãos do seu arbítrio”[2]. Porém, aqueles que não conhecem a Deus, pessoas de lugares isolados no mundo que por desventura não tenham conhecido o anúncio do Evangelho, também aqueles que estão diariamente diante das Igrejas, do seu anúncio e até mesmo, na pior das hipóteses, dentro delas sem saber o que estão fazendo ali, estão dotados de liberdade, mas não sabem para quê.
Todos estão na direção do carro, mas nem todos sabem para onde ir. O problema se torna ainda maior porque além de não saberem onde o destino fica, a cidade é muito grande e o tanque pode ficar vazio a qualquer momento. Liberdade não é uma possibilidade infinita, há limites para ser verdadeira liberdade. Todos são livres para percorrer uma estrada e nossa liberdade não seria maior se pudéssemos, a qualquer momento, jogar o veículo ribanceira abaixo. Como é triste ser livre e não saber para onde a vida vai, muito mais triste do que não saber sobre o que escrever um texto.
Fulton Sheen em sua autobiografia ‘Tesouro em barro’, tecendo um elogio ao então Papa João Paulo II, dá uma valiosa lição sobre liberdade: “não significa direito de se fazer o que quiser, pois, se assim fosse, só os fortes seriam livres […] A liberdade que ele prega é a liberdade de fazer o que você deve fazer”[3]. Há um lugar onde se chegar e só é possível alcançá-lo na verdadeira liberdade.
Digo verdadeira liberdade, porque nada era tão complicado quanto escolher um título de filme na locadora para assistir sexta-feira à noite. Os infindos corredores, onde se tinha toda liberdade de escolha, constituíam um peso e uma responsabilidade: quem garantiria que o filme escolhido seria o melhor possível? Na liberdade sempre há deliberação, portanto, ela faz do homem o responsável pelos seus atos na medida em que eles são voluntários[4]. Espero que os filmes tenham sido bons.
Quão grande não deveria ser a tristeza daqueles homens sentados na praça, que Jesus apresenta na parábola dos trabalhadores da undécima hora[5]; livres para ir onde quisessem e tristes por não saberem onde estariam ao pôr do sol. Uma coisa era certa: havia em casa uma esposa e um bom número de filhos, na esperança de que ao fim do dia, o pai chegaria com o sustento e o alimento necessário.
Façamo-los felizes! Mas como? Vamos dar um punhado de dinheiro? Um pouco de pão? Cantar para dançarem[6]? Abaná-los devido ao calor do sol? O que curaria a tristeza? Eles estão diante de uma folha em branco e não sabem onde devem chegar, sabem tão somente, que logo entregarão essa folha e deve haver algo nela, ainda que seja a decisão de deixá-la em branco.
O que seria oposto a essa tristeza? A esperança, ora! ‘Como assim?’, você deve se perguntar a essa altura, ‘não deveria ser a alegria?’. De nada adianta pedir alegria para transformar a melancolia do tempo presente se não há esperança. O que vence a tristeza é a esperança. A vida sem rumo é triste porque não sabe onde vai. Injetar alegria na vida de um desses trabalhadores que não tem direção, até pode colocar um sorriso no seu rosto, mas ele ainda estará perdido e sem saber para onde ir. Nesse sentido, esperança “é a virtude teologal pela qual desejamos como nossa felicidade o reino dos céus e a vida eterna”[7].
A esperança na aurora do dia é a primeira paga dos trabalhadores chamados logo cedo, desta não gozam os que chegaram por último. Muitas vezes, eu tomei como minha, a indignação do trabalhador que fica irritado por trabalhar o dia todo e ganhar o mesmo que alguém que só chegou no fim do expediente. Mas a esperança tornou a jornada de trabalho mais doce, mais feliz, porque “a esperança responde à aspiração de felicidade colocada por Deus no coração de todo homem”[8].
Se há dor e sofrimento no mundo presente, é triste viver sem a perspectiva de que existe um Céu onde não há sofrimento ou choro. Se há fome entre os mais necessitados, é triste viver sem a perspectiva de uma justiça que supera o tempo e mais triste ainda não conhecer o Pão que alimenta e que dá a vida eterna. Se há sede, é triste viver sem a perspectiva de que há uma fonte da qual jorra água viva, que sacia definitivamente toda a sede. Enfim, se há incompletude na vida do homem, é triste viver sob o fardo de permanecer eternamente incompleto. Estar sempre na direção, poder ir a qualquer lugar, mas não saber para onde ir.
A paga da esperança alegrou mais aqueles que chegaram primeiro, a paga da recompensa alegrou mais aqueles que vieram pela última hora. Não há injustiça. Há entretanto, uma misericórdia que antecipa o céu no mundo presente, ainda que no mais profundo sofrimento, mesmo diante do escândalo da Cruz, que deu a paga ao ladrão arrependido já nos últimos instantes da vida.
“Do que se fala aí dentro?” o bom ladrão poderia perguntar na porta do Templo. “De Deus!” lhe responderia um mestre da lei mais paciente, que seguiria o seu caminho sem mais explicações. O nome de Deus para ele seria uma lembrança distante, um nome que gerava medo e que permanecia desconhecido. “Do que se fala aí dentro?”, ele perguntaria de novo, “de nada que te importe!” diria outro mestre, mais alinhado aos julgamentos impiedosos dos homens que vemos nos Santos Evangelhos.
Eis a tristeza de esperar na praça: desconhecer que há uma vinha onde se pode trabalhar, onde há uma justa paga ao fim do dia, “a praça é tudo o que está fora da vinha, isto é, da Igreja de Cristo”[9]. Quantas vezes para você, caro leitor, a esperança não foi a justificação diante de um sofrimento? Como um remédio que alivia a dor e certifica-nos de que tudo haverá de ser melhor? A esperança do Céu é sempre um alívio para os sofrimentos deste mundo.
O Céu é o lugar na cidade onde ao fim da vida o nosso carro deve chegar. É a finalidade da folha em branco, diante da qual, sabemos o que é preciso fazer. Dê esperança a alguém! Fale do seu desejo pelo Céu, porque em todos os homens se encontra esse desejo, está ali, como que debaixo da folha em branco. Aos operários na praça, o trabalho na vinha não era uma novidade, eles sabiam como trabalhar. É o encontro da necessidade do dono das videiras com a capacidade de trabalho dos operários.
Todos nós, em virtude do nosso Batismo e da nossa Confirmação, temos a obrigação de trabalhar para que a mensagem da salvação chegue a todo o mundo, é o próprio Deus que nos encarrega desse apostolado. Estamos a serviço do dono da vinha e temos a missão de ganhar mais operários para a vinha do Senhor[10].
Assim, o anúncio da Boa Nova vem sempre de encontro à existência do homem que ganha sentido à luz da sublime finalidade que é o Reino dos Céus. A novidade desse anúncio não se reduz a um lugar, dentro da geografia do universo, para onde devemos dirigir, mas traz também a boa notícia do amor presente de Deus por cada um. Amor que não é obstado no nosso pecado e tampouco no nosso desconhecimento. Não estamos sozinhos na direção.
A esperança vem pelo anúncio. Nos dá a conhecer a Deus que nos ama na jornada, quando ainda dirigimos a esmo sem saber que rumo tomar, quando ainda estamos sentados na praça a espera de um serviço ou quando estou diante de uma folha em branco e um tema livre. Ele amou no princípio de tudo, ama agora e amará no fim da jornada, desde a folha em branco até o último ponto final.
Gabriel Hudson de Oliveira, 1º ano da Configuração.
[1] Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (CIC). 19ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2017. n. 1731;
[2] Eclo, 15,14;
[3] SHEEN, Fulton John. Tesouro em Barro. 1ª ed. São Paulo: Editora Molokai, 2020. p. 260, (grifo do autor);
[4] CIC, n. 1734;
[5] Cf. Mt 20,1-16;
[6] Cf. Mt 11,17;
[7] CIC, n. 1817;
[8] Ibid, n. 1818;
[9] ORÍGENES apudAQUINO, Tomás de. Catena Aurea. Vol. 1. 1ª ed. Campinas: Ecclesiae. p. 616;
[10] Cf. CIC, n. 900;